A ditadura militar e a festa popular, por Bruno Filippo

Beija-Flor 1976
Beija-Flor 1976 – Site oficial da Beija-Flor

Bruno Filippo*

Em 2022, a competição entre as escolas de samba completará 90 anos. Como no ano passado a pandemia, pela primeira vez, suprimiu os eventos carnavalescos, fossem blocos ou escolas, fala-se já que ano que vem será “o maior carnaval de todos os tempos”, sem que ainda se saiba exatamente o que fará a diferença. No rastro das cinzas deixadas pelos carnavais anteriores, de novo a temática política, desta vez traduzida no discurso da resistência, será a tônica dos enredos das escolas de samba.

Diferentemente dos blocos, a estrutura das escolas funda-se na competição e na rivalidade entre elas, o que requer um grau de disciplina para o cumprimento de regras. Há poucas semelhanças entre a espontaneidade que o imaginário associa à folia e às escolas de samba; e se essa afirmação causar estranhamento, que as dúvidas se dissipem com a leitura do regulamento da Liga Independente das Escolas de Samba. São páginas e páginas com dezenas de artigos, cada um com vários itens.

A característica apolínea das escolas leva ao surgimento de lideranças capazes de comandá-las e torná-las competitivas com a injeção de recursos financeiros, de origem escusa ou não. São os chamados “donos” ou “patronos”, que se perpetuam no poder por meio de mistura entre poder financeiro, carisma e imposição violenta.

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A dependência de recursos e de regulação do poder público – o carnaval é de competência das prefeituras – obrigou as escolas a serem pragmáticas no trato com os mandatários do poder. Passaram-se trinta anos até que elas começassem a desfilar com enredos que fugissem ao chauvinismo e aos personagens da história oficial, nos anos 1960. Nisso a Beija-Flor foi uma retardatária exemplar; e, quando veio a ditadura, enquanto as outras agremiações sofriam censura, a escola de Nilópolis estendeu-lhe a avenida. Era ainda era uma escola pequena quando o PIS foi estrela de seus desfiles em homenagem aos governos militares. Buscava tirar benefícios do regime que a ajudou a controlar o poder na cidade de Nilópolis, um pequeno município da Baixada com menos de 200 mil habitantes. O clã Abraão David comanda-o desde 1973 e, camaleônico, soube adaptar-se à implantação da democracia no Brasil. Nilópolis tem um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado do Rio.

No ano em que iniciou seu domínio político em Nilópolis, Anísio Abraão David fez a Beija-Flor desfilar com Educação para o desenvolvimento (“Uni-Dini-Tê/Olha o ABC/Graças ao Mobral/Todos podem aprender”); em 74, com Brasil Ano 2000 (“É estrada cortando/A mata em pleno sertão/É petróleo jorrando/Com afluência do chão”); e 75, com O grande decênio (“Nas asas do progresso constante/Onde tanta riqueza se encerra/Lembrando PIS e PASEP/E também FUNRURAL/Que ampara o homem do campo com segurança total”).

Eram tempos em que, quando a escola encerrava o desfile, como em 2018, acontecia o que o jornal O Globo de 1975 noticiou: “Acostumado a receber, ditas com muito mais talento pelos meios de comunicação, informações sobre PIS, PASEP, Mobral e Funrural, o público retirou-se em massa das arquibancadas no meio da apresentação da Beija-Flor de Nilópolis, última escola a desfilar.” Ironia da história: no vitorioso desfile de 2018, com enredo contra a corrupção, havia uma ala que, para contestar o peso do estado, fazia referência negativa ao PIS.

Em 2003, o Brasil inaugurou a Era Lula – e a agremiação não perdeu o bonde da história. Passou pela avenida com o enredo bastante parecido com o atual: O povo conta a sua história: “saco vazio não para em pé” – a mão que faz a guerra faz a paz (Oh!!! meu brasil/Overdose de amor nos traz/Se espelha, na família “Beija-Flor/Lutando eternamente pela paz). Mais uma vez, o espelho do amor, da paz para o Brasil está na escola.

Fechando o desfile, uma escultura do recém-eleito presidente – mas não como protesto, e sim como homenagem. Anísio costumava dizer-se amigo de Lula. Em 2015, homenageou Guiné Equatorial, comandada por um ditador há mais de três décadas. A Odebrecht, que realizava obras naquele pequeno país africano, foi uma das patrocinadoras da escola.

Em 2022, o enredo será “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, um resgate da herança intelectual africana no Brasil.

*Bruno Filippo é jornalista e sociólogo

Para saber mais:
Chapa Branca: farda e fantasia nos desfiles da Beija-Flor, de Carlos Carvalho (compre aqui)

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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