Não adianta fazer enredo sobre Abdias Nascimento e ignorar as causas que ele apoiava, diz carnavalesco da Mocidade Unida da Mooca sobre protestos

André Rodrigues comemora título da MUM no Acesso 2 em 2018 – Divulgação

Na festa do lançamento do CD com sambas de enredo de 2020 de São Paulo, no início de dezembro último, uma escola se destacou – e não foi pela quantidade de papel picado jogado na Fábrica do Samba. Com componentes levando faixas de protesto e bandeiras do Brasil manchadas de vermelho, a Mocidade Unida da Mooca (MUM), do Acesso 1, usou a apresentação para, além de apresentar a trilha do desfile, clamar por justiça pelas mortes de moradores de favelas em ações policiais. Isso uma semana depois da tragédia no baile funk de Paraisópolis, que resultou na morte de nove jovens durante uma incursão da Polícia Militar na comunidade.

“A gente quer chamar atenção, e chamar atenção para a escola é chamar atenção para o assunto (…) Não adianta fazer esse enredo e não apoiar as causas que o Abdias apoiava”, diz o carnavalesco da MUM, André Rodrigues, ao Setor 1. E o assunto em questão, a violência contra os negros, defende o artista, está totalmente dentro do enredo sobre Abdias Nascimento (1914 – 2011) – o professor, senador e dramaturgo, entre outras atividades, com intensa militância pelos direitos humanos e no movimento negro.

Foto de arquivo de 01/04/2004 do poeta, professor, ator e artista plástico, Abdias Nascimento, durante entrevista na Glória, zona sul do Rio de Janeir

“Um dos fatores que motivaram a escolha [do enredo, batizado “A ópera negra de Abdias do Nascimento”] foi justamente fazer as pessoas conhecê-lo. E muito do que debatemos hoje foi iniciado com o Abdias”, afirma Rodrigues, autor do enredo que finalmente consegue emplacar, após uma tentativa na União da Ilha, onde trabalhou com o carnavalesco Severo Luzardo.

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Carioca, com vários trabalhos em diversas grandes escolas do Rio como assistente, Rodrigues deixa escapar um discreto sotaque quase paulistano ao defender o enredo sobre Abdias, que, segundo ele, amadureceu na Mooca. Na Ilha, o personagem a ser explorado era tão somente o artista. Na Zona Leste, o desfile ganhou o componente político, muito por força da fase atual do país. “Infelizmente”, lamenta o carnavalesco, ciente de que são tempos de que, no lugar de falar sobre comida, por exemplo, é hora de gritar contra a fome.

Leia os principais trechos da entrevista de André Rodrigues ao Setor 1

A MUM foi um dos destaques da festa de lançamento do CD, com o protestos pelas mortes em Paraisópolis e outras comunidades em ações policiais. Esse tipo de iniciativa é sua ou é algo que parte da própria escola?
É minha, mas que a escola abraçou. Eu fiz os últimos três enredos da MUM, apesar de não ter terminado o do ano passado [Rodrigues precisou deixar a Mooca por causa de compromissos no Rio de Janeiro]. Quando eu fechei meu primeiro Carnaval na Mooca (em 2018, com título do Acesso 2), fizemos um pacto de que eu ajudaria até a escola chegar ao Grupo Especial. A MUM tem um plano de carreira, muito consciente do que pode e o que não pode. Umas das teclas em que bati era em como a escola quer ser vista, e acho que pra isso ela precisa apostar em enredos mais maduros, para passar a ser vista de outra forma. Acho que estamos conseguindo. Isso vai de encontro ao meu tipo de Carnaval e o meu posicionamento político. E a escola vem abraçando. O protesto na festa partiu mais deles, inclusive. Daí nasceu a ideia das faixas e bandeiras. A escola amadurece comigo e eu amadureço com a escola. Hoje é algo que já está na cultura da escola. Pela fase do país, a escola vai tomando um lado político naturalmente.

Faixa exibida pela Mocidade Unida da Mooca na festa de lançamento do CD de 2020 – Reprodução/Instagram MUM

A política é o grande assunto do momento no Brasil.
Sim. Esse enredo do Abdias [Nascimento] eu tenho ele desde 2017. Era para ser da União da Ilha. Na época o Severo [Luzardo, carnavalesco] reuniu a equipe e preparamos varias ideias do enredo. A ideia do [enredo] Nzara Dembu é minha, por exemplo, com a linguem dele, e o Abdias estava na mesa, só que sem o componente político, era mais voltada ao teatro experimental do negro. O enredo amadureceu com a nossa própria vivência, até ganhar esse lado politico que hoje tem na Mooca. Ele amadureceu com o tempo, com as coisas do país, e infelizmente com tudo que estamos vivendo, com tantas mortes nas favelas. A luta do Abdias vem desde muito tempo. Ele sempre colocou isso em pauta.

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E ele não chega a ser uma figura tão conhecida, não?
Quando decidimos o enredo, vimos que as pessoas não o conheciam. Um dos fatores que motivaram a escolha foi justamente fazer as pessoas conhecê-lo. E muito do que debatemos hoje foi iniciado com o Abdias. Tem a questão do empoderamento da mulher preta, a reparação histórica… O debate sobre cotas, que voltou após a última eleição, é parte disso, e nasceu com o Abdias. Ele tem uma importância enorme para a formação intelectual do negro no Brasil. Só que as pessoas não sabem que foi ele. No mundo político pouquíssimas pessoas sabem.

Virou uma questão urgente?
Se tornou importante lembrar quem era esse cara. Para saber de quem a gente está falando e se posicionar corretamente.

Rodrigues com Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle Franco. Anielle participou da gravação do samba e vai desfilar na escola – Divulgação

Fazendo uma analogia, no lugar de enredos sobre comida, seria tempo de enredos sobre fome, por exemplo?
É um pouco disso. Você deixa uma lacuna. E acho que as pessoas querem falar sobre isso. O importante é preencher esses espaços e fazer enredos que superem os limites da avenida. Não adianta fazer Abdias e não conseguir fazer com que as pessoas pretas desfilem na escola. Não adianta fazer esse enredo e não apoiar as causas que o Abdias apoiava. Hoje a gente é muito procurado por pessoas que estudam e gostam da historia do Abdias para desfilar e colaborar. Isso já é vencer o limite do desfile, é fazer o máximo para fazer do desfile uma ação real de comunidade, de cidadania. O papel da escola de samba também é esse.

E como tem sido a relação da escola com os representantes do movimento negro?
Hoje em dia há uma certa resistência ao Carnaval por alguns deles, que defendem que os negros não deveriam mais participar dos desfiles porque as escolas são comandadas por brancos em geral. Comecei a fazer um trabalho para mostrar o contrário, que o espaço do Carnaval é do negro e deve ser ocupado pelos negros. Esse espaço é nosso.

Que tipo de reação você espera em relação à escola?
A gente quer chamar atenção, e chamar atenção para a escola é chamar atenção para o assunto. Faremos algumas homenagens já no ensaio técnico [8 de fevereiro]. Não tem como voltar atrás.

Romulo Tesi

Romulo Tesi Jornalista carioca, criado na Penha, residente em São Paulo desde 2009 e pai da Malu. Nasci meses antes do Bumbum Paticumbum Prugurundum imperiano de Aluisio Machado, Beto Sem Braço e Rosa Magalhães, em um dia de Vasco x Flamengo, num hospital das Cinco Bocas de Olaria, pertinho da Rua Bariri e a uma caminhada do Cacique de Ramos, do outro lado da linha do trem. Por aí virei gente. E aqui é o meu, o nosso espaço para falar de samba e Carnaval.

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